Os atos antidemocráticos de 8/1: terroristas, não; desprezíveis, com certeza!

Por Luiz Augusto Sartori de Castro para o ConJur

Conforme amplamente divulgado pela imprensa nacional e internacional, no último dia 8/1/2023, o ministro Alexandre de Moraes determinou, dentre outras medidas, o afastamento de Ibaneis Rocha do governo do Distrito Federal, “após requerimento formulado pela AGU diante de atos terroristas contra a democracia e as instituições brasileiras” [1].

Isso porque, segundo o ministro Alexandre de Moraes, estariam “inequivocamente demonstrados os indícios de materialidade e autoria, ainda que por participação e omissão dolosa, dos crimes previstos nos artigos 2º, 3º, 5º e 6º (atos terroristas, inclusive preparatórios) da Lei nº 13.260, de 16 de março de 2016″ [2].

Em sua decisão, todavia, o ministro Alexandre de Moraes não se ocupou em tecer uma só palavra que permitisse deduzir os fundamentos jurídicos que o levaram a concluir estar diante de atos criminosos de caráter terrorista. É bem verdade que a decisão de S. Exa. não poupou esforços em enumerar situações ocorridas no fatídico dia 8/1, notadamente para justificar os motivos pelos quais, em seu entender, tratar-se-iam de “desprezíveis ataques terroristas à democracia e às instituições republicanas”.

Contudo, como de há muito se sabe no mundo jurídico, a mera referência às situações fáticas ocorridas em 8/1 não se apresenta como suficiente para alçar uma decisão à qualidade de devidamente fundamentada, afinal, quaisquer que sejam as fontes racionais e/ou irracionais que ensejaram a descoberta e fundamentação de uma decisão, “o juiz, perante o seu cargo (função) e a sua consciência tão só poderá sentir-se justificado quando a sua decisão também possa ser fundada na lei, o que significa, ser dela deduzida” [3].

Bem por isso, conquanto concordemos com o ministro Alexandre de Moraes que os atos ocorridos em Brasília foram desprezíveis, reputamos que sua decisão padece de vício insanável, o qual, ao que se pode depreender de seu conteúdo, não decorreu de mero lapso.

Muito pelo contrário. Nas palavras de Peter Sloterdijk [4], o ministro Alexandre de Moraes sabia muito bem o que estava fazendo, mas mesmo assim o fez.

Claro, pois o ministro Alexandre de Moraes — jurista que é —, por certo, tem ciência que os atos antidemocráticos ocorridos em 8/1 não poderiam ser tipificados como terroristas pelo simples fato de que a Lei nº 13.260/16, por opção do legislador, limitou a prática de terrorismo aos atos praticados “por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião”, o que, evidentemente, não fora o mote da barbárie verificada naquele domingo.

Vale dizer: ainda que o senso comum possa denominar como terroristas os atos antidemocráticos ocorridos em Brasília, ao ministro Alexandre de Moraes era defeso assim os qualificar. A uma, pois o termo “terrorismo” apresentar conceito bem definido no Direito brasileiro, “pouco importando as representações mentais que essa palavra faça surgir em nós” [5].

A duas, porque “ninguém pode ser punido simplesmente por ser merecedor da pena de acordo com nossas convicções morais ou mesmo segundo a sã consciência do povo porque praticou uma ordinariceou um facto repugnante, porque é um canalha, ou um patife, mas só o pode ser quando tenha preenchido os requisitos daquela punição do tipo (hipótese) legal, de uma lei penal” [6] — o que, repita-se, não ocorreu em relação ao terrorismo.

O mesmo, todavia, não se diga em relação ao crime previsto no artigo 359-L do Código Penal e artigo 2ª da Lei nº 12.850/13, os quais reputamos terem sido praticados por todos, absolutamente, todos aqueles que participaram dos atos ocorridos no último domingo, tendo a pessoa invadido e/ou depredado — ou não — os prédios públicos.

Em relação ao primeiro crime, a saber, o de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, porque não há qualquer dúvida de que as pessoas que participaram desse ato bárbaro tentaram abolir o Estado de Democrático de Direito, notadamente mediante a prática de atos violentos que tinham por finalidade impedir ou restringir o exercício dos poderem constitucionais.

Já em relação ao crime de integrar organização criminosa, reputamos que a sua ocorrência decorra do fato de seu êxito somente ter sido verificado em razão da associação de diversas pessoas, estruturalmente ordenadas e com divisão de tarefas. Isto é, o êxito criminoso exigiu, obrigatoriamente, o agir simultâneo de diversas pessoas, incluindo aquelas que financiaram o transporte — gratuito — de inúmeras pessoas até Brasília.

Note-se que a quantidade de favorecidos com as transações indevidas, somada à ágil movimentação dos recursos para diversas contas de terceiros, demonstram que a associação ordenada de quatro ou mais pessoas estruturalmente ordenadas não só é indiscutível, como, principalmente, fora fundamental para o consecução dos delitos, afinal, a reunião das pessoas para a prática dos crimes não se deu de modo pontual e sem uma estruturação estável por detrás.

Prova maior disso, é bom dizer, se extrai do fato de os atos ocorridos no último domingo terem sido orquestrados a partir dos acampamentos que se instalaram defronte ao Quartel General do Exército em Brasília, em diversas cidades brasileiras e, ainda, virtualmente em redes sociais.

Por conseguinte é que em nosso entender, todos aqueles que participaram dos atos ocorridos na capital federal no último dia 8/1, podem, em tese, responder pelos crimes previstos no artigo 359-L do Código Penal e artigo 2ª da Lei n. 12.850/13, independentemente de terem invadido os prédios públicos ou permanecido no gramado, notadamente porque nos parece indiscutível que a vontade livre e consciente de todos era integrar um organização criminosa, a qual tinha por finalidade “tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais visando”.

Nesse contexto, a distinção de condutas somente se mostra possível em relação àqueles que, em acréscimo, danificaram e/ou furtaram bens públicos e furaram bloqueios policiais. Nessas três situações, os envolvidos deverão, ainda, ser responsabilizados, respectivamente pelas práticas dos crimes de dano (artigo 163, parágrafo único, inciso III, CP); furto qualificado (artigo 155, parágrafo 4º inciso I, CP) e resistência qualificada (artigo 329, parágrafo 1º, CP).

Como se vê, não há dúvida que os participantes dos desprezíveis ataques à democracia e às instituições republicanas devem ser responsabilizados pela prática de diversos crimes. Todavia, mesmo imbuídos “dos melhores sentimentos de proteção social” [7], nos parece equivocado, com o devido respeito, qualificá-los como atos terroristas.

Afinal, como de há muito defendido pelo professor Celso Fernandes Campilongo [8], “as melhores intenções podem gerar consequências extremamente negativas”, haja vista, por exemplo, que “para uns, o bem comum pode significar a ampla participação na vida pública; para outros, pode representar a não interferência na vida privada. A paz, para alguns, tem o sentido de desarmamento; para outros, diversamente, estar fortemente armado é a melhor garantia da paz.


[3] ENGISCH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. Trad. João Batista Machado. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. 85.

[4] SLOTERDIJK, Peter. Crítica de la razón cínica. trad. Miguel Ángel Vega, Madrid: Ediciones Siruela, 2003. p. 40.

[5] HARDY-VALLÉE, Benoit. O que é um conceito. trad. Marcos Bagno. São Paulo: Parábola, 2013. p. 58.

[6] ENGISCH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. Trad. João Batista Machado. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. 79.

[7] STJ, 6ªT, HC nº 137.349/SP, rel. min. Maria Thereza de Assis Moura, DJe 30/5/2011.

[8] CAMPILONGO, Celso Fernandes. Política sistema jurídico e decisão judicial. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011, edição do Kindle. locais do Kindle 1757-1759.

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