Interpretação do artigo 319 do CPP testa limites do Judiciário sobre a política

Publicado no Conjur

O artigo 319 do Código de Processo Penal está no cerne do debate sobre supostas intromissões do Poder Judiciário em outros poderes nos últimos anos. O dispositivo estabelece medidas cautelares alternativas à prisão de servidores públicos e fundamentou o afastamento de seus cargos de políticos como Eduardo Cunha (PTB), Aécio Neves (PSDB) e, mais recentemente, o governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB).

Entre as nove medidas alternativas apresentadas pelo artigo 319, está a “suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais”.

O mesmo artigo permite aos magistrados determinarem desde a obrigação de comparecimento periódico em juízo até o uso de tornozeleira eletrônica.

O dispositivo pode ser aplicado para fundamentar o afastamento da função pública daqueles acusados de cometerem qualquer crime que tenha pena restritiva de liberdade, desde que o caso atenda também os requisitos do artigo 282, que disciplina a decretação da prisão preventiva.

O jurista Lenio Streck acredita que o mandato popular não pode ser equiparado as outras funções públicas, mas com algumas ressalvas: “A suspensão do exercício da função pública não poderia ser entendida como suspensão de mandato. Isso seria fazer uma interpretação extensiva. Mas admito que a questão é complexa, porque é melhor ser suspenso do mandato parlamentar do que ser preso, uma vez que o artigo 319 é uma forma de substituir a prisão. Isso só mostra a complexidade do Direito. Fosse simples não teria graça!”

A criminalista Luiza Oliver, sócia do escritório Toron Advogados, explica que o artigo 319 cumpre um papel importante ao oferecer alternativas menos gravosas do que a prisão. Contudo, ela acredita que o fato de o dispositivo não fazer qualquer distinção entre servidores que ocupam cargos alcançados via voto popular e os concursados e comissionados abre brechas para interpretações problemáticas.

“É preciso ver com muita cautela tudo o que envolve afastamento de pessoas que ocupam cargos concedidos via voto popular. Estamos falando da soberania popular de um lado e do Poder Judiciário de outro”, pondera a advogada.

Ela sustenta que a Constituição já estabelece garantias como imunidade parlamentar e necessidade de convalidação da prisão — mesmo em flagrante — de parlamentares pelas casas legislativas. “Existem instrumentos presentes na própria Constituição e nas leis que buscam garantir que não exista nenhum superpoder.”

Sistema bipolar

A redação do artigo 319 do CPP foi alterada pela Lei 12.403, de 2011. Antes disso vigorava no processo penal brasileiro um sistema bipolar, isto é, ou se soltava ou se decretava a prisão do investigado.

O advogado e professor de processo penal do IDP Luís Henrique Machado explica que o artigo foi alterado justamente para dar mais racionalidade ao nosso sistema e coibir a decretação de prisões provisórias excessivas.

“Importante salientar que, nos casos de afastamento de políticos do cargo, o STF e o STJ têm tomado o cuidado do órgão colegiado sempre referendar a decisão do ministro relator que determinou o afastamento por meio de liminar. Acredito que os dois tribunais, de um modo geral, têm conferido interpretação adequada ao artigo 319 do CPP”, afirma.

Machado acredita que, se existe uma causa provável, porém não cabal, de que o agente público, investido no mandato, está a reiterar as ações delitivas, o Direito deve responder a essa questão de alguma maneira. “Nesse ponto, a meu ver, tanto o STF como o STJ têm acertado na maioria das vezes”, sustenta.

Devagar com o andor

O advogado e doutor em Direito Penal Conrado Gontijo, por sua vez, acredita que o afastamento de um político eleito só pode ser justificado pela comprovação cabal de que o detentor do cargo eletivo se vale dele para praticar crimes. “Somente, mesmo, em casos excepcionais, em que a existência de elementos da prática delitiva e do uso do cargo indevidamente estejam comprovados.”

Gontijo acredita que esse tipo de afastamento deve ser absolutamente excepcional. “De toda forma, o critério a ser adotado é: a manutenção desse sujeito no cargo (eletivo ou não) representa um risco real e grave para a ordem pública, para a produção de provas, para o regular desfecho do processo? Essa é a pergunta”, argumenta.

O criminalista Átila Machado defende uma interpretação ainda mais restrita do artigo 319 no que diz respeito a detentores de cargos eletivos. “Valendo-se de um (super) poder geral de cautela, o Poder Judiciário vem praticando excessos na imposição de medidas cautelares, notadamente no que diz respeito à suspensão cautelar do exercício da função pública de políticos democraticamente eleitos”.

Ele defende que o rol previsto no artigo 319 do CPP é inegavelmente taxativo e não admite uma leitura elástica em desfavor do cidadão. “A lei não se vale de palavras inúteis. O Código de Processo Penal faz expressa menção à função pública, no inciso VI, do art. 319, do CPP, havendo evidente diferenciação doutrinária entre função pública e cargos não eletivos. Inclusive, o próprio legislador faz essa distinção por diversas vezes no ordenamento jurídico”, explica citando o artigo 92, I, do Código Penal.

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